sexta-feira, maio 30, 2014

cegueira

Por que me resulta tão difícil acreditar nas tuas palavras fáceis, onde o ruído e o silêncio se enleiam em inférteis novelos opacos?
Espero mais, quero mais que palavras vagas.
Quero devastar o instinto que te impele a recuar, quero sentir que nos mereço, quero rasgar o laço que te deixa à mercê de ti próprio e arrancar o véu que nos detém os passos.
Quando na tua boca só crescem desculpas do que fomos, não me atrevo a desenganar-me. Não.
Não deixes que penduremos no frágil prego das horas, o vazio que preenchemos...
É na hora da despedida que lateja o peito, que salta pela boca o coração, que se derrete o estômago e que se enevoa a voz, rouca do prenúncio de solidão.
É quando se esgueiram os dissimulados agoiros por detrás da verdade que cega.

Borboletas

Os bilhetes que escondemos aqui e ali são borboletas renovadas na asa do amor,
São recordações fervorosas de que o presente persiste.
Mas será que chega?
Será que a saudade tem pernas para andar?
Será que o amor tem pernas para fugir sem coxear?
Os perdões que ecoam na memória dos abraços
Destroem o cansaço das armas baixas
E o sabor das ilusões explode-nos nos braços.
Quem vai à guerra, dá e leva vestígios de rancor.

terça-feira, maio 27, 2014

Aos putos que o ódio pariu

Na linha da frente,
Aceleras o passo, com nervos de aço,
Ergues o braço.

Puto, que o ódio pariu,
Corres as cidades de fio a pavio.

No que pensas, afinal?

Numa cor original?
Sabias que o branco é produto do plural?

Puto, que o ódio pariu,
Corres as cidades de fio a pavio.

Não há mistérios,
Não há misturas!
Só um misto de ignorância e de cara dura.
(Há gente que satura de tão "pura").

Puto, que o ódio pariu,
Corres as cidades de fio a pavio.

De ânimo leve,
Palavras breves, branca de neve,
Lavas as mãos no ódio dos irmãos.

Puto, que o ódio pariu,
Corres as cidades de fio a pavio.

Na linha da frente,
Só tens em mente
Uns parasitas virulentos.

Puto, que o ódio pariu,
Corres as cidades de fio a pavio.




segunda-feira, janeiro 20, 2014

Estar e não ser

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A indissoluta culpa  dispersa-se no ópio pesado do ar.

Não estou à espera de ninguém, só de mim, de um olhar perdido, de um sorriso vazio, talvez desta alma penada no mundo que encontrei, presente e distante.

Neutralizou-me. Rendi-me, sufocou-me.

Acende-se a memória rara do universo em mim. Acendi-a e traguei-a, leve trago amargo do tempo sem fim.

sábado, maio 19, 2012

Paradoxo

Se me perdi no tempo, não sei, ou se nunca te tive.
Se me perdi em ti ou se ainda não me encontraste...
Creio que talvez não tenhas tido a coragem de me amar.
Não és o único.
São pequenos os indícios, mas eu vejo-os, sinto-os a espreitar.
Desculpa, mas nunca me contentarei com o que não tenho.


terça-feira, maio 31, 2011

Scientia

Lentamente sobre mim, abrem-se as madeiras, roídas dos bichos, gastas, carcomidas pelo tempo, deslavadas, esfoladas pelos golpes impetuosos do vento e o branco da tinta que a reveste, lasca-se e esvoaça. Ressoa um guincho estridente de ferro velho, oxidado; melodia intermitente que me desperta da letargia. E ouço, sinto o vento no rosto, esboçando um sorriso gasto e adulterado. Cai vidro no chão e o que resta do mesmo não é mais que um conjunto incoerente de estilhaços brilhantes e pontiagudos. O vidro quebrado devolve-me um sorriso estranhamente redondo, aberto, dissonante. Aproximo-me e, num ímpeto desesperado, fecho o punho e desventro-lhe o sorriso. Escancaro as madeiras impulsivamente e num estrondo avassalador, deixo-me banhar pelos raios de um sol pálido e distante. Ao longe, ouço o som da vida, sinto a luz do mundo, ...ao longe, como o eco improvável de uma voz chamando por mim.

terça-feira, maio 10, 2011

Húmus

Silêncio desbotado,
alma transparente.
Música, serenata,
que ninguém entende.

Nos meus olhos brilha
uma densa escuridão.
As paredes oprimem-te,
cheiram a solidão.
Sento-me só,
cravo as unhas no chão.

Alma deslavada,
silêncio indigente,
alimenta-se do vazio
e das sombras da gente.

Não soando a nada,
inunda o ar,
um eco molhado
de terra profanada.

segunda-feira, maio 09, 2011

Transparência

Obrigo-me a ler frases que matam para poder assistir da primeira fila ao horror do meu sofrimento e ao ridículo da minha existência. Rio de mim às gargalhadas. Masoquista? Não, difícil de vencer, assentando os pés na própria teimosia. Nem voltando atrás, nem com os erros, nem com as evidências do presente, aprendo. Refugio-me na minha serena ignorância, na podridão que me envolve e nos contactos fugazes com o mundo cuja presença procuro, sem fim, obstinadamente... Sem sucesso, ou melhor, sem real retorno. Mas o que sou eu? Será a doença que me consome contagiosa? Onde está o mundo? Onde estão vocês? Sussurro, chamo, grito e só me é devolvido o eco da minha própria voz. A solidão acende essas horrendas chamas em mim, mas o sopro da consciência, serena o lume, reduzindo-o a cinzas. Aconchego-me na dor e não vergo perante esse veneno, mas sinto que, mesmo assim, irremediavelmente, é perceptível. Sem antídoto, percorro as vielas da minha consciência e vou tragando, insaciável, algumas gotas da própria bílis.

quarta-feira, abril 06, 2011

bisturi

A esta hora, já deveria estar a dormir e deveria ter deixado coisas para fazer amanhã, mas não! Passei o dia mergulhada no trabalho e enquanto não o terminei, não descansei. O que é raro, sendo eu procrastinadora por excelência. É raro e estranho. Não por ser bizarro, mas por ser próprio do meu estado de espírito: ando a estranhar algo, talvez a ignorar algo, como diz Milan. Talvez não nesse sentido, mas no sentido literal da palavra também: ando a ignorar-me a mim própria... Ando a fugir de mim, prejudicando-me. Anulo-me e destruo-me metaforicamente falando, mas não só. A verdade não me pode abrir os olhos, só depois de abri-los é que a conseguirei ver. Falta-me só um passo...

quarta-feira, março 23, 2011

Cronos

Exalo tempo por todos os poros da minha pele;
Respiro cada minuto convertendo-o em séculos,
Aspiro a derrotá-lo.
Esse inimigo,
Esse traidor sonolento e vagaroso.
Invicto e maquiavélico manipulador.
Transpiro indolência compulsivamente,
Obstino-me impaciente, fremente,
Já intermitente,
Sadicamente,
Vence-me,
E expiro.

segunda-feira, março 14, 2011

Inferno

Hoje, chove. A escola está inundada. Há água em todo o lado: nas poças enormes, há lama, há terra nas salas, há fugas no tecto. A escola está fria, impessoal, desagradável, húmida. Nunca foi acolhedora, mas os passos que temos que dar a céu aberto para ir de uma sala à outra contribuem para essa sensação de mal-estar.
Na escola, já não se ouvem só as vozes dos alunos, mas o ruído incessante dos martelos pneumáticos que me tolhe o pensamento. Estão agora na minha cabeça e furam-me o cérebro. Já não consigo pensar, as ideias misturam-se e enleiam-se. Já nada é claro. Não me consigo concentrar e a minha capacidade de raciocínio começa a falhar.
O pó esvoaça, o entulho cai pesadamente, os vidros quebram-se e um martelo tresmalhado impõe o seu ritmo de pedra entre os escombros de tijolo e cimento.
A ventoinha do termoventilador range à medida que gira num frenesim repetitivo, reiterando a mesma frase metálica ao longo do dia. Estou no inferno...